por IVAN MARTINS
É editor-executivo de ÉPOCA
Fonte: https://glo.bo/2BlT1Lg
Eu descobri a fixação pelos pés femininos por volta dos 20 anos, num livro improvável para esse tipo revelação: Henfil na China (antes da Coca-cola). Nesse delicioso relato de viagem, o famoso cartunista do Pasquim dedicava fotografias e comentários deslumbrados aos pés das mulheres chinesas. Aquilo mexeu comigo. Mais tarde, vim a saber que a paixão de Henfil pelos pés femininos era uma de suas marcas registradas – uma tara pública, notória e gostosamente inofensiva.
Olhando para trás, é admirável que Henfil achasse erotismo nos pés espartanos dos anos 70. Aquilo, meus amigos, era uma pedreira. Só havia beleza natural, como a da selva Amazônica. Depilações e pedicures não tinham a frequência, a qualidade ou a importância de vida e morte que ganharam hoje. Para amar aqueles pés calejados, com unhas frequentemente maltratadas, aromatizados pelo uso repetido de sandálias de couro e botas com sola de borracha, havia quer ser um devoto. Como Henfil.
Ontem, decidido a escrever sobre pés, fui fuçar na internet e achei estatísticas impressionantes. Sete de cada 10 homens têm uma relação erótica especial com as extremidades inferiores das mulheres – e algo como 30% da população masculina sofre de verdadeira obsessão em relação a elas. O nome desse popularíssimo fetiche é podolatria. Ponha a palavra no Google e você vai descobrir um universo do qual (provavelmente) não fazia ideia. Eu, pelo menos, não fazia.
Para o verdadeiro podólatra, pés não precisam ser bonitos ou bem cuidados. Podem sem problema estar sujos ou mal cheirosos. Não faz diferença. O fetichista radical pensa em pés o tempo inteiro e os devora com todos os sentidos, inclusive o da audição. Ou não seria um prazer exasperante ouvir o toc-toc dos sapatos contra o piso? Procure na internet: pés são para ser beijados, mordidos, massageados e cheirados. Pode-se até transar com eles, apenas. Uma fantasia comum aos adeptos é deitar no chão e se deixar pisar – com salto agulha. A maioria dos homens não vai tão longe, mas gosta.
Lembro de uma ocasião, anos atrás, em que eu estava em Paris para cobrir um congresso médico. Era início da primavera e fazia na cidade um calor aconchegante. Sentei num café ao ar livre, na praça de Saint Sulpice, e, imediatamente, notei uma moça de cabelos castanhos sentada à minha direita. Ela usava blusa clara e saia curta, escura. Lia reclinada de leve sobre a mesa, apoiada em um dos cotovelos, e tinha as pernas cruzadas. A cena toda era linda, mas ficou gravada na minha memória por um detalhe totalmente fetichista: o sapato (mocassim? bailarina?) que ela balançava, indolentemente, na ponta do pé direito.
Esse tipo de memória específica não é exceção entre os homens. Tenho amigos que se lembram, meticulosamente, da lateral de um seio que emergiu, 10 anos atrás, de um vestido sem mangas um pouco mais cavado que o usual. Ou do biquíni branco que uma arquiteta de compleição escandinava e bumbum africano usava na piscina da USP em meados dos anos 80. Outro dia, tomando uma cerveja com um velho amigo da faculdade, a conversa escorreu, inevitavelmente, para a boca de lábios carnudos de uma colega de centro acadêmico – por anda andaria aquela beldade de ar belluciano?
Li uma vez que esse tipo de amor aos pedaços seria (mais um) resultado da nossa primeira infância.
Os bebês descobrem o corpo da mãe aos poucos. Primeiro, claro, vêm os seios. Depois a boca, de onde emergem sons familiares e tranquilizadores. Os olhos devem ser uma revelação luminosa. Imagine-se na situação de um recém-nascido e tente calcular o impacto duradouro que esses pedaços de mulher terão sobre ele. O mesmo texto dizia que os homens passam boa parte da vida para montar o quebra-cabeças dessa mãe fragmentada. Só assim serão capazes de amar uma mulher inteira, que seja algo mais que a soma de pedaços fetichistas. Parece que alguns nunca conseguem.
Não me perguntem de onde vem a atração particular de tantos homens pelos pés das mulheres. Eles estão praticamente excluídos da lista de contatos iniciais entre mãe e filho. Na cronologia das descobertas, as crianças devem aprender que as mães têm pés somente quando começam a sentar no chão, sozinhas, ali pelos seis meses de idade. Mesmo assim, deve ser um espetáculo majestoso a visão daqueles órgãos poderosos que afastam e aproximam dele a presença prazerosa da mãe…
Mas eu tenho a impressão, sem ter lido em lugar nenhum, que existe outro fenômeno, paralelo, que vai na direção contrária da superação do fetichismo. É a sua descoberta tardia.
Por muito tempo na vida adulta os homens são tão deslumbrados com o corpo das mulheres que quase não notam seus detalhes. Ou pelos menos não se apegam a eles. É uma experiência análoga à da arquitetura: quantas vezes você precisa entrar no Teatro Municipal antes de superar o assombro e começar a perceber as partes que, juntas, fazem daquilo uma maravilha?
Para descobrir o corpo da parceira, talvez seja preciso certa calma no olhar, que só vem com o tempo e a repetição. Antes dessa calma, o homem é prisioneiro das heranças infantis e da cultura sexual da tribo a que pertence. Olha para onde foi ensinado a olhar. O tempo ensina a descobrir as próprias preferências geográficas – o tempo e, muito provavelmente, sem a cola do sentimento, qualquer corpo, de homem ou de mulher, faz sentido por algum tempo, mas logo se desfaz num quebra-cabeças desinteressante. Sem sentimento não há tempo de passar da primeira impressão, de descobrir novidades, de entender aquilo que, no corpo do outro, nos ensina, pelo erotismo e pelo prazer, algo de novo sobre nós mesmos.